A expansão das marcas de moda no Brasil sempre foi um desafio monumental, repleto de particularidades regionais, desafios logísticos e obstáculos operacionais que testam a capacidade de adaptação de qualquer empresa.
Para compreender o momento atual e as oportunidades que se desenham no horizonte, é fundamental revisitar a evolução histórica dos modelos de expansão no varejo brasileiro e entender como chegamos ao ponto de inflexão em que nos encontramos hoje.
Historicamente, o modelo multimarcas foi o verdadeiro protagonista da capilaridade das marcas pelo território nacional. Era através desses lojistas locais, muitas vezes empreendedores familiares com profundo conhecimento de suas comunidades, que as marcas conseguiam chegar aos rincões mais distantes do país.
Esse modelo funcionava de forma orgânica e natural: representantes comerciais percorriam o interior, estabeleciam relacionamentos de confiança com lojistas e, gradualmente, construíam uma rede de distribuição que espelhava a própria geografia econômica brasileira.
No entanto, as últimas três décadas testemunharam uma transformação radical nesse cenário. O modelo de franquias, impulsionado pelo trabalho consistente da Associação Brasileira de Franchising (ABF) e por características específicas do mercado brasileiro, ganhou uma força avassaladora e passou a dominar as estratégias de expansão das principais marcas do país.
Esse movimento não foi acidental, mas resultado de uma confluência de fatores econômicos e regulatórios que tornaram o franchising extremamente atrativo.
O alto custo de capital no Brasil transformou a franquia naquilo que podemos chamar de um “IPO tupiniquim” — uma forma engenhosa de expandir a marca utilizando capital de terceiros, diluindo o risco financeiro e acelerando o crescimento.
A vasta extensão territorial brasileira, que sempre foi um desafio para a gestão centralizada, encontrou no modelo de franquias uma solução aparentemente ideal: empreendedores locais com conhecimento regional, mas operando sob a padronização e supervisão da marca.
Somaram-se a isso os incentivos do regime tributário do Simples Nacional, que facilitaram a operação de pequenos negócios, e o resultado foi uma explosão do franchising que relegou o canal multimarcas a um papel secundário no planejamento estratégico da maioria das empresas.
Marcas como O Boticário, Havaianas, Arezzo e centenas de outras construíram impérios baseados nesse modelo, criando redes com milhares de unidades e faturamentos bilionários. O sucesso foi tão expressivo que o franchising passou a ser visto como sinônimo de expansão bem-sucedida, ofuscando outras possibilidades e criando uma espécie de pensamento único no setor.
Contudo, após décadas de crescimento acelerado, o modelo de franquias começou a mostrar seus limites estruturais. A saturação dos principais mercados urbanos tornou-se evidente, com shoppings centers disputando espaços milimetricamente e custos de locação atingindo patamares proibitivos.
Simultaneamente, o perfil do franqueado ideal tornou-se cada vez mais escasso: empreendedores com capital suficiente, experiência em gestão e disposição para seguir rigorosamente os padrões da marca não são recursos infinitos no mercado.
Mais importante ainda, o modelo de franquias revelou uma limitação geográfica fundamental. Apesar de todo o sucesso, a grande maioria das redes permanece concentrada em municípios com mais de 100 mil habitantes, especialmente aqueles com shoppings centers ou centros comerciais estruturados.
Considerando que apenas 12% dos municípios brasileiros possuem mais de 100 mil habitantes, isso significa que 88% dos 5.570 municípios do país onde vivem milhões de consumidores permanecem largamente desatendidos pelo modelo tradicional de expansão.
É neste contexto que emerge uma pergunta fundamental: será que não é hora de as marcas voltarem a olhar para o canal que originou sua expansão? E se a resposta para o futuro do varejo estiver em uma plataforma já estabelecida e robusta, composta por aproximadamente 200.000 lojistas multimarcas espalhados por todo o território nacional?
A analogia com o Airbnb não é casual nem superficial. Assim como a plataforma de hospedagem revolucionou o turismo ao conectar pessoas que têm imóveis disponíveis com viajantes que precisam de acomodação, criando uma rede global sem construir um único hotel, as marcas de moda têm diante de si uma oportunidade similar.
Em vez de investir milhões na construção de novas lojas ou na busca por franqueados ideais, elas podem ativar uma “infraestrutura instalada” milhares de pontos de venda já operacionais, com equipes treinadas, relacionamento estabelecido com a comunidade local e profundo conhecimento dos hábitos de consumo regionais.
Para compreender a magnitude dessa oportunidade, é essencial analisar os números que definem o varejo brasileiro. Dados recentes indicam que cerca de 52% do consumo formal de moda no país ocorre fora dos grandes centros urbanos.
Isso significa que metade do mercado está pulverizada em cidades de 10, 20, 50 mil habitantes muitas delas sem shoppings ou grandes centros comerciais, mas todas com lojistas multimarcas atendendo suas comunidades com dedicação e conhecimento local.
Quando comparamos os modelos de expansão do ponto de vista do capital necessário, as diferenças são gritantes. Abrir uma loja própria em um shopping de grande centro urbano pode exigir investimento superior a R$ 1 milhão, incluindo obras, estoque inicial, contratação e treinamento de equipe, licenças e garantias de aluguel.
Para uma marca que deseja abrir 100 novas lojas próprias, estamos falando de um investimento que pode superar R$ 100 milhões, sem contar os custos operacionais contínuos e o tempo necessário para que cada unidade atinja sua maturidade processo que pode levar até cinco anos.
O modelo de franquias, embora transfira o investimento inicial para o franqueado, também carrega custos significativos para a marca: pesquisa e seleção de franqueados, desenvolvimento de manuais operacionais, treinamento inicial, suporte contínuo, auditorias regulares e, frequentemente, co-investimento em inaugurações e campanhas de marketing local.
Além disso, a marca precisa manter uma estrutura dedicada para gestão da rede, com consultores de campo, sistemas de monitoramento e programas de capacitação contínua.
Em contraste, a estratégia via multimarcas apresenta um perfil de investimento radicalmente diferente. O CAPEX para expansão é praticamente zero, uma vez que a estrutura física, a equipe, o relacionamento com a comunidade e o know-how operacional já existem.
O investimento da marca concentra-se em programas de apoio, capacitação, incentivos, tecnologia e marketing cooperado uma fração do que seria necessário para criar a mesma capilaridade através de lojas próprias ou franquias.
Mas a transformação do modelo multimarcas em uma verdadeira plataforma de crescimento exige muito mais do que simplesmente vender produtos para lojistas. É necessária uma mudança fundamental de mindset, passando de uma relação transacional para uma parceria estratégica genuína.
No passado, a relação com multimarcas funcionava no modelo “sell-in” tradicional: o representante comercial visitava a loja, apresentava a coleção, o lojista fazia seus pedidos, a marca entregava os produtos e a relação se encerrava até a próxima temporada. O pós-venda era reativo e limitado.
A nova lógica exige que as marcas tratem as multimarcas como extensão do seu próprio ecossistema. Isso significa investir na capacitação contínua dos lojistas e suas equipes, fornecendo treinamentos sobre técnicas de venda, conhecimento de produto e storytelling da marca. Significa também criar programas de comunicação unificada e marketing cooperado, disponibilizando conteúdos, materiais gráficos e calendários promocionais adaptados à realidade local.
A tecnologia desempenha um papel fundamental nessa transformação. Ferramentas como WhatsApp Business API, ERPs simplificados, portais de pedidos integrados e dashboards de acompanhamento permitem que marcas mantenham relacionamento próximo e contínuo com centenas ou milhares de lojistas, oferecendo suporte em tempo real e monitorando performance de forma eficiente.
Plataformas cloud para download de materiais de marketing, vídeos tutoriais para montagem de vitrines e sistemas de CRM compartilhado criam uma infraestrutura de apoio que seria impensável apenas alguns anos atrás.
O suporte operacional também precisa ser repensado. Kits de visual merchandising escalonados para lojas de diferentes portes, manuais de boas práticas adaptados à realidade do interior e equipes dedicadas a field marketing com promotores itinerantes são exemplos de como as marcas podem criar valor real para seus parceiros multimarcas.
Programas de incentivos personalizados, bonificações por performance e prêmios para lojistas que seguem as diretrizes da marca completam o arsenal de ferramentas disponíveis.
Pude testar a eficácia dessa abordagem quando idealizamos e implementamos projetos pioneiros no mercado brasileiro. O projeto “ATP (Aqui tem Puket)”, implementado já em 2007, foi um marco nessa direção. De forma similar, o “HSM (Hope sob medida)” da Hope Lingerie, a partir de 2010, replicou o sucesso com centenas de operações ativas.
Em ambos os casos, o conceito foi o mesmo: mapear os principais lojistas multimarcas em municípios sem massa crítica para franquias e implementar o conceito de store-in-store, criando espaços dedicados e padronizados da marca dentro da loja multimarcas. Hoje, ambas as marcas contam com centenas de Store in Store em operação.
Outro exemplo ainda mais impressionante do potencial dessa estratégia foi o projeto “Vitrine Premiada”, desenvolvido para o lançamento da coleção Marcyn com Sabrina Sato. Através de uma campanha de incentivo bem estruturada, que fornecia produtos e material de marketing, a ação conquistou a adesão de mais de 1.000 vitrines em lojistas de todo o Brasil simultaneamente.
Seria impossível e proibitivamente caro alcançar tal capilaridade e impacto em tão pouco tempo usando apenas lojas próprias ou franquias.
Estratégias análogas, como os projetos “Tudo Lupo” e “Aqui tem Malwee“, demonstram que essa é uma prática consolidada e inteligente no setor, validada por algumas das marcas mais respeitadas do mercado brasileiro. O que esses cases provam é que a plataforma multimarcas não apenas existe, mas está disponível e aguardando para ser ativada de forma inteligente e estratégica.
Naturalmente, esse modelo não está isento de desafios. O principal deles é a perda relativa de controle sobre a experiência da marca. Diferentemente de uma loja própria ou franquia, onde a marca pode estabelecer padrões rígidos de atendimento, visual merchandising e operação, no modelo multimarcas a execução depende do grau de engajamento e capacidade do parceiro.
O lojista pode optar por dar mais destaque a produtos concorrentes, a equipe de vendas pode não estar completamente alinhada com o posicionamento da marca, e a experiência do consumidor pode variar significativamente de uma loja para outra.
Além disso, nem toda multimarcas tem o perfil, a estrutura ou a reputação desejada pela marca. É necessário investir tempo e recursos na curadoria dos parceiros, selecionando aqueles que realmente agregam valor à rede e têm potencial para representar adequadamente a marca em suas respectivas regiões.
Esse processo de seleção e desenvolvimento de parceiros exige uma abordagem mais sofisticada do que a tradicional venda através de representantes comerciais.
Outro desafio importante é a necessidade de mudança cultural dentro das próprias marcas. Equipes comerciais acostumadas a focar em “venda imediata” precisam ser treinadas para pensar em “construção de marca” de longo prazo. Isso exige investimento em capacitação interna, desenvolvimento de novos processos e, muitas vezes, reestruturação de áreas comerciais e de marketing para suportar adequadamente o modelo de plataforma.
Apesar desses desafios, as vantagens do modelo são inegáveis. A velocidade de escala é incomparável: uma política robusta de ativação de multimarcas pode dobrar a presença da marca em poucos anos, atingindo regiões onde jamais seria viável abrir lojas próprias ou atrair franqueados.
O custo incremental por novo ponto de venda ativado é uma fração do que seria necessário em outros modelos. E, talvez mais importante, a adaptação cultural é natural: o lojista conhece profundamente seu cliente, domina o calendário local e consegue traduzir a proposta da marca para o contexto regional de forma autêntica.
Quando observamos o cenário internacional, vemos que essa abordagem não é exclusividade brasileira. Na Europa, o modelo de concept stores em pequenas cidades da Itália e lojas de departamento regionais na França sempre conviveram harmoniosamente com grandes redes.
Nos Estados Unidos, marcas digitais nativas como a Allbirds priorizam parcerias com lojistas independentes para penetrar rapidamente em mercados onde não pretendem abrir lojas próprias.
No Brasil, com suas dimensões continentais e diversidade regional, essa estratégia torna-se ainda mais relevante. Num país de 5.570 municípios, onde apenas cerca de 600 têm shoppings ou concentram grandes franquias, o multimarcas representa a verdadeira ponte com o consumidor real aquele que forma opinião, gera volume e demanda soluções pensadas para sua realidade específica.
A marca que se dispõe a investir genuinamente no sucesso do canal multimarcas acelera sua awareness nacional, testa novos produtos com menor risco, constrói laços de confiança regionais e cria um exército de “embaixadores locais” que realmente compram a causa da marca.
Mais do que isso, ela se posiciona para capturar oportunidades em mercados emergentes, acompanhar mudanças demográficas e adaptar-se rapidamente a novos comportamentos de consumo.
O futuro do varejo brasileiro, especialmente no setor de moda, passa pela capacidade de orquestrar essa “plataforma invisível” multimarcas uma verdadeira “rede Airbnb” do varejo, onde marcas escalam sem investir pesadamente em estruturas físicas ou processos gerenciais complexos, mas potencializando ecossistemas já existentes e co-criando valor em colaboração com lojistas locais.
Essa abordagem exige tecnologia, flexibilidade e genuíno espírito de parceria. Mais do que seguir tendências globais, é reconhecer que a identidade do consumo brasileiro nasce e se consolida no varejo de rua, nas cidades interioranas, onde as multimarcas são verdadeiras rainhas.
Empresas que assumirem o desafio de criar e aperfeiçoar esse modelo terão não apenas escala, mas relevância duradoura em um mercado que valoriza, cada vez mais, quem sabe construir junto e entender o Brasil em toda sua pluralidade e complexidade.
O modelo de franquias e lojas próprias continuará relevante e necessário, especialmente nos grandes centros urbanos e para marcas que exigem experiências altamente controladas. Porém, sua capacidade de responder com agilidade, escala e profundidade ao Brasil real é estruturalmente limitada.
A verdadeira oportunidade de crescimento sustentável e nacionalização de marcas está na ativação inteligente da vasta rede multimarcas que já existe, aguardando apenas o olhar estratégico e o investimento adequado para se transformar na mais poderosa plataforma de expansão varejista do país.
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