Vamos falar de franquia? Por décadas, o franchising foi o símbolo da profissionalização do empreendedorismo no Brasil. Com uma combinação eficaz entre marca consolidada, suporte operacional e padronização de processos, ele oferece a milhares de brasileiros a possibilidade de empreender com menor risco e mais previsibilidade.
Hoje, no Brasil o modelo soma quase 198 mil unidades franqueadas, representa cerca de 2,2% do PIB, movimenta R$ 273 bilhões por ano e emprega diretamente 1,7 milhão de pessoas. Ainda assim, nunca esteve tão pressionado — pelas transformações econômicas, sociais e comportamentais que remodelam o varejo e os negócios como um todo.
Recentemente, a maior rede de chocolates do país, a Cacau Show, foi alvo de críticas nas redes sociais por conta de relatos de franqueados insatisfeitos. O caso, que ganhou visibilidade digital, acendeu um sinal de alerta sobre a saúde do modelo.
Estaria o franchising, afinal, em xeque?
A resposta exige cautela, mas também honestidade. Não estamos diante de um colapso, mas sim de um teste de maturidade. O franchising brasileiro passa, hoje, por uma inevitável encruzilhada: ou se reinventa para um novo tempo — mais tecnológico, mais transparente, mais centrado na sustentabilidade do franqueado — ou corre o risco de perder relevância em um mercado que não perdoa estruturas rígidas e relações desequilibradas.
A força de um modelo que nasceu sob medida para o Brasil
Não por acaso o Brasil se tornou uma das maiores potências mundiais em franchising. Num país de dimensões continentais, com grandes variações regionais de cultura, consumo e operação, a figura do franqueado local foi a solução natural para um dilema estrutural: como escalar uma marca nacionalmente mantendo a adaptabilidade regional?
A resposta veio no formato de franquia, onde o operador conhece o território, contrata a equipe, cuida da execução e mantém o padrão da marca.
Essa descentralização eficiente foi fortalecida por dois fatores: a expansão dos shopping centers e o regime tributário do Simples Nacional. Os shoppings brasileiros, diferentes dos EUA e Europa, se consolidaram como centros de lazer e consumo, abrindo espaço para milhares de franquias em lojas satélites.
Já o Simples Nacional, ao reduzir carga e burocracia, democratizou o acesso de pequenos empreendedores à economia formal e estruturada. O resultado: surgiram redes mais robustas, com franqueados capitalizados e mercado aquecido.
O Simples, no entanto, virou um teto de vidro
Mas o regime que ajudou a consolidar o franchising também impôs um limite perigoso. O teto de faturamento anual do Simples Nacional — congelado há anos — tornou-se uma barreira ao crescimento. Ao ultrapassá-lo, o franqueado é empurrado para uma tributação mais pesada, com complexidade contábil maior e margens comprimidas.
Resultado: muitos preferem não expandir, abrir uma nova empresa em nome de terceiros ou simplesmente estagnar. Essa “armadilha do crescimento” desafia franqueadores a repensar seu modelo de expansão e suporte ao franqueado.
O caso Cacau Show: quando a escala amplia o eco dos ruídos
No centro da recente controvérsia está a Cacau Show, que com 4.661 unidades figura entre as maiores redes do planeta. É importante observar o contexto: em grandes redes, é comum que de 10% a 15% das unidades enfrentem dificuldades.
Isso, na Cacau Show, representa entre 460 e 700 lojas — números absolutos que, por si só, figuraria entre as maiores redes do pais. Nas redes sociais, essa proporção ganhou contornos de crise sistêmica. Mas o verdadeiro ponto de atenção é outro: como o franqueador reage quando esse percentual se manifesta? Há plano de ação, suporte, transparência? Essa resposta define mais a saúde do modelo do que o ruído digital em si.
Juros altos, folha cara e escassez de mão de obra: o tripé da pressão operacional
Ao observar os desafios atuais do franchising, três fatores se impõem com força. O primeiro é o custo do capital: com a taxa Selic acima de 14%, qualquer investimento precisa competir com o mercado financeiro. Abrir uma franquia passa a exigir retorno alto e rápido — algo cada vez mais difícil com margens apertadas.
O segundo é o custo de folha, agravado pelas operações em shoppings que funcionam 12 horas por dia, sete dias por semana. Isso exige uma equipe ampliada, turnos rotativos, escala diferenciada — e, claro, maior custo trabalhista. Além disso, o apetite das novas gerações por modelos flexíveis e home office torna o varejo menos atrativo como empregador. A escassez de mão de obra tornou-se a principal dor de cabeça de 62% dos franqueados, segundo a ABF.
Governança e suporte: os pilares que sustentam uma rede madura
Se o franqueado é o motor local, a franqueadora é o cérebro estratégico. Redes sólidas sabem disso e operam com governança ativa: fóruns de franqueados, indicadores compartilhados, escuta estruturada, auditorias e planos de recuperação para lojas em risco.
A nova Lei de Franquias (13.966/2019) exige mais transparência, com uma Circular de Oferta de Franquia (COF) que deve ser completa e atualizada. A ABF, entidade que regula e fortalece o setor, tem atuado com protagonismo nesse processo de amadurecimento institucional.
O suporte não pode mais se limitar a um manual e um treinamento inicial. Hoje, ele envolve marketing digital, tecnologia de gestão, negociação com shopping, acompanhamento de resultados, acesso a dados e capital. Quando esse suporte falha, o franqueado sente-se desamparado — e a rede fragiliza.
Tecnologia e inovação: não é mais diferencial, é sobrevivência
As redes que lideram em performance são também aquelas que dominam o digital. ERP, CRM, automação de pedidos, inteligência de dados, apps de gestão — tudo isso faz parte da operação moderna. A Vivara, por exemplo, integrou estoque entre lojas e centros de distribuição, adotou check-in automatizado e tornou a experiência de compra mais fluida.
O Boticário criou canais híbridos com lojas, e-commerce, venda direta e consultoras. O Giraffas, por sua vez, renovou seu digital, fortaleceu o delivery e ultrapassou a marca de R$ 1 bilhão em faturamento.
Esses casos mostram que o franchising bem feito ainda tem enorme poder de escalar, inovar e gerar valor. Mas exige, cada vez mais, estratégia, tecnologia e foco absoluto na experiência do cliente — e na viabilidade financeira do franqueado.
E, afinal, o franchising está em xeque?
Sim — mas no bom sentido da palavra. O xeque representa uma ameaça que exige resposta estratégica. E o setor tem respondido: profissionalizando redes, ajustando modelos, reforçando governança e apoiando seus franqueados. Há desafios evidentes — teto do Simples, custo do capital, pressão trabalhista, ruídos digitais. Mas há também maturidade crescente, inovação constante e uma base econômica robusta.
O franchising continua sendo uma das formas mais seguras e estruturadas de empreender no Brasil. Ele democratiza o acesso ao negócio próprio, gera empregos, ativa economias locais e impulsiona marcas nacionais para patamares globais.
Para quem deseja empreender com suporte, método e marca reconhecida, ele segue sendo uma via preferencial. Mas como toda boa ferramenta, precisa ser bem utilizada — com responsabilidade, visão de longo prazo e compromisso mútuo entre franqueador e franqueado.
Mais do que em xeque, o franchising está em evolução.
E essa, talvez, seja sua melhor chance de continuar vencendo.
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