Trader Joe's contra o vulcão

Trader Joe’s contra o vulcão

Uma rebelião no coração do varejo!

Esse mundo VUCA nos provoca ansiedade, estamos com medo de perder algo (FOMO), por isso vamos a todas as feiras, eventos, congressos, afinal, não podemos correr o risco de sermos os últimos a saber.

Eu sou assim, quando não posso ir a algum evento, ainda tento captar a essência do que aconteceu em compilados de quem foi, ou, como no caso dos grandes congressos, participo de eventos-pós-eventos. Sim, você leu certinho.

Entre os pós-eventos, se destacam os ligados à NRF (principal evento de varejo mundial).

Vou tanto, que já faz algum tempo que venho notando os pós-NRF sendo, na prática, compilados de tecnologias aplicadas ao varejo.

A maioria das flagship stores de Nova York, que são visitadas pelas missões, se parece mais com laboratórios de tecnologia do MIT do que com qualquer outra coisa. 

Câmeras de rastreamento ocular, carrinhos com tablets embutidos, algoritmos de recomendação em tempo real, tudo sob a promessa de uma experiência de compra personalizada, fluida e futurista. 

Todo mundo sai desses eventos com aquela proverbial pulga atrás da orelha: será que essa coisarada toda dá dinheiro ou é somente buzz?

Eis que uma notícia inverteu completamente essa dinâmica: a rede Trader Joe’s decidiu ignorar a revolução digital

A última fronteira humana do varejo

“Não rastreamos nossos clientes”, disse Tara Miller, vice-presidente de marketing, no podcast Inside Trader Joe’s. 

A frase soou como um grito de guerra em meio a um mercado onde o rastreamento comportamental virou o novo petróleo. 

Matt Sloan, vice-presidente de cultura e inovação, foi ainda mais incisivo: “O retail media é a admissão de que fazer compras em supermercados comuns era um desastre.” 

Para Sloan, a explosão de telas nos corredores, agora tratadas como o “próximo Google Ads”, é um sintoma de fracasso experiencial, não de avanço.

Trader Joe’s parece apostar que, em meio ao ruído da digitalização, o silêncio da interação humana pode ser a nota mais alta.

A rebelião anti-hype

Para entender essa recusa, precisamos invocar um velho conhecido do mundo da inovação: o Hype Cycle do Gartner

Cinco estágios descrevem a trajetória emocional de qualquer nova tecnologia:  

  1. Gatilho da Inovação
  2. Pico das Expectativas Infladas
  3. Vale da Desilusão
  4. Rampa da Iluminação
  5. Platô da Produtividade

Muitas das tecnologias evitadas pela Trader Joe’s, desde self-checkouts até retail media, estão exatamente entre o pico da empolgação e o fundo da decepção. 

Trader Joe’s se recusa a entrar nessa montanha-russa. 

E essa recusa não é apatia tecnológica, mas uma estratégia de diferenciação deliberada. 

É um tipo raro de ousadia: escolher o tempo certo para não inovar, como um surfista que observa a onda passar, esperando a maré certa.

Mas por que essa recusa ressoa com tanto poder?

Em parte, porque atinge um ponto sensível da vida contemporânea: a fadiga da tecnologia. 

Após anos de hiper personalização, muitos consumidores se perguntam: até que ponto quero ser conhecido? 

Em um mundo onde nossos dados são analisados até quando compramos brócolis, a ideia de um lugar onde ninguém está olhando soa quase libertadora.

Trader Joe’s está vendendo mais do que comida. Está vendendo privacidade emocional.

E mais: sua estratégia não é apenas retrô, mas quase teatral. As prateleiras escritas à mão, as embalagens exclusivas, tudo colabora para transformar a loja em um cenário onde a vida real tem mais valor.

Quiet luxury

Paradoxalmente, a recusa tecnológica da Trader Joe’s a aproxima do universo das marcas de luxo.

Na alta costura, por exemplo, o silêncio publicitário de uma Hermès não é negligência: é branding. O que não se grita, seduz. O que não se rastreia, protege. O que não se automatiza, envolve.

Trader Joe’s está fazendo algo parecido. 

Ao evitar a automação, ele reconhece o contato humano como algo raro, portanto, precioso. 

Cada funcionário deixa de ser um custo operacional e passa a ser um ativo de diferenciação emocional.

Claro, há um preço

A ausência de e-commerce pode afastar clientes com mobilidade reduzida ou agendas caóticas. 

A não adesão a programas de fidelidade digitais pode limitar a profundidade dos relacionamentos comerciais. 

E, caso tecnologias como checkouts invisíveis ou apps de navegação em loja amadureçam, Trader Joe’s poderá parecer antiquado.

Mas a questão é: para quem?

Porque talvez Trader Joe’s não esteja tentando atender a todos. Talvez esteja mirando um nicho crescente: o dos consumidores que não querem um supermercado inteligente, mas um supermercado gentil.

A loja como lugar

No fundo, a decisão da Trader Joe’s é uma defesa da loja como espaço social, quase comunitário. Onde comprar não é apenas adquirir, mas estar. 

Em um mundo onde tudo está a um clique de distância, a presença física, calorosa, falível, humana, se torna um ato quase político.

Se a maioria dos supermercados caminha para se tornarem versões glorificadas de um feed de Instagram com escaneamento facial, Trader Joe’s se recusa a participar dessa metamorfose. 

E, ao fazer isso, talvez esteja nos lembrando de algo essencial: que mercados, antes de serem algoritmos, eram pessoas reunidas na praça.

E talvez seja isso que alguns de nós ainda estejam procurando quando compramos pão, um pouco de humanidade para levar para casa.

O P de Place

Se chegou até aqui, obrigado, você deve estar pensando porque o fundador de uma empresa de tecnologia para o varejo está levantando esse tema tão não tech. 

A razão é a seguinte, acredito que, em primeiro lugar, a tecnologia deve ajudar o varejo naquilo que não vai mudar, e o #geomarketing é uma lógica ancestral que vai continuar contribuindo para as melhores estratégias de localização.

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O título deste artigo faz referência ao filme Joe Versus the Volcano, de 1990, protagonizado por Tom Hanks e Meg Ryan.

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